Foi S. João Crisóstomo, patriarca de Constantinopla, (nascido em Antioquia em 347, falecido, no exílio, na Armênia, em 407) quem pregou mais ardentemente aos cristãos para regressarem ao primeiro comunismo dos Apóstolos. Este célebre pregador, na sua 11ª homilia sobre o Atos dos Apóstolos, disse: “E havia uma grande caridade entre eles ( os Apóstolos); ninguém era pobre entre eles. Ninguém considerava como seu o que lhe pertencia, todas as suas riquezas estavam em comum... uma caridade existia em todos eles. Esta caridade, consistia em que não havia pobre entre eles, de tal modo que os tinham bens apressavam-se a desprender-se deles. Não dividiam as suas fortunas em duas partes, dando uma e guardando a outra; davam o que tinham. Assim não havia desigualdade entre eles. Todos viviam em grande abundancia. Tudo se fazia com o maior respeito. O que davam não passava da mão do doador para a mão do que recebia; as suas dádivas eram sem ostentação; traziam os bens aos pés dos apóstolos que se tornavam os controladores e donos deles e que os usavam, daí para o futuro, como bens da comunidade e já não como propriedade de indivíduos. Por este meio cortaram a possibilidade de vã glória. Ah! Por que é que se terão perdido estas tradições? Ricos e pobres poderiam todos tirar proveito destes costumes piedosos e uns aos outros sentiríamos o mesmo prazer em nos conformarmos com eles. Os ricos não empobreceriam ao desprenderem-se das suas posses, e os pobres seriam esquecidos... Mas tentemos dar uma idéia exata do que se deveria fazer... Ora, suponhamos – e nem pobres nem ricos precisam se alarmar, pois eu estou apenas a supor – suponhamos que vendemos tudo o que nos pertence para pormos o produto da venda numa conta comum. Que somas de ouro se amontoariam! Não sei dizer com exatidão quanto isso iria dar; mas se todos entre nós, sem distinção de sexo, trouxéssemos os nossos tesouros, se vendêssemos os campos, as propriedades, as casas – não falo de escravos, pois não havia nenhum na comunidade cristã e os que houvesse tornavam-se livres – talvez, se todos fizessem o mesmo, creio que conseguiríamos centenas de milhar de libras de ouro, milhões, enormes valores.
“Bem. Quantas pessoas pensam que vivem nesta cidade? Quantos cristãos? Concordam em que haja uns cem mil? O resto será constituído por judeus e gentios. Quantos não conseguiríamos unir? Ora, se contássemos os pobres, quantos seriam? Cinqüenta mil necessitados, no máximo. O que seria necessário para os alimentar em cada dia? Julgo que a despesa não seria excessiva, se o fornecimento e o consumo da alimentação fossem organizados em comum. Dir-se-á ta;vez: “mas o que será de nós quando estes gêneros estiverem consumidos?” Mas o quê? Isso poderia acontecer? A graça de deus não seria mil vezes mais abundante? Não estaríamos nós a fazer um céu na terra? Se anteriormente esta comunidade de bens existiu entre três a cinco mil fiéis e teve tão bons resultados e baniu a pobreza entre eles por que não resultaria numa grande multidão como esta? E entre os próprios pagãos, quem não se apressaria a aumentar o tesouro em comum? E entre o tesouro comum? A riqueza que é possuída por várias pessoas é muito mais fácil e rapidamente gasta: a difusão da propriedade é a causa da pobreza. Tomemos como exemplo uma família composta de marido, esposa e dez filhos, a esposa ocupando-se em fiar a lã, o marido trazendo do seu trabalho fora de casa; digam-me em que gastaria mais esta família, se vivendo em comum ou vivendo separadamente. Obviamente, se estivessem separados. Dez casas, dez mesas, dez criados e dez subsídios especiais seriam necessários para crianças se vivessem separados. O que é que se faria se possuíssem muitos escravos? Não é verdade que para reduzir as despesas se iria aumentá-los numa mesa comum? A divisão é uma causa de empobrecimento; a concórdia e a unidade de vontades é uma causa de riquezas.
“Nos mosteiros, ainda se vive como na primitiva Igreja. E quem morre de fome ali? Quem é que ali não encontra o bastante para comer? Contudo os homens do nosso tempo temem viver dessa maneira mais do que temem cair no mar! Por que é que não tentamos? Temê-lo-íamos. Que grande ato seria esse! Se alguns fiéis, uns escassos oito mil, gostaram, na presença de todo o mundo, onde não tinham senão inimigos, de fazer uma corajosa tentativa de viver em comum, sem qualquer auxílio externo, quanto o melhor o podíamos os fazer hoje, agora que já cristãos em todo o mundo? Permaneceria um único gentio? Nenhum, creio eu. Nós atrai-los-íamos todos e ganhá-lo-íamos para nós”.
Estes ardentes sermões de S. João Crisóstomo foram em vão. Os homens na não mais tentaram estabelecer o Comunismo nem em Constantinopla, nem em parte nenhuma. Ao mesmo tempo que o cristianismo se expandia e se tornava, em Roma, depois do século IV, a religião dominante, os fiéis distanciavam-se cada vez mais do exemplo dos primeiros Apóstolos. Mesmo dentro da própria comunidade cristã, a desigualdade de bens entre os fiéis cresceu.
De novo, no século VI, Gregório, O grande, disse “Não é, de modo algum, bastante não roubar a propriedade dos outros; é errado conservar para si próprio a riqueza que Deus criou para todos. Aquele que não dá aos outros o que possui é um assassino; quando guarda para seu próprio uso o que proveria os pobres, pode dizer-se que está a matar os que podiam ter vivido da sua abundância; quando repartimos com os que estão sofrendo, nós não damos o que nos pertence, mas o que lhes pertence. Isto não é um ato de misericórdia, mas o pagamento de uma dívida”.
Estes apelos foram infrutíferos. Mas a culpa não foi, de modo algum, dos cristãos desses dias, que na verdade correspondiam mais às palavras dos Padres da Igreja do que os cristãos de hoje. Não foi a primeira vez na história da humanidade que as condições econômicas se mostraram elas próprias mais fortes que belos discursos.
O Comunismo, esta comunidade de consumo de bens, que os primitivos cristãos proclamaram, não podia ser posta em prática sem o trabalho comum de toda a população, na terra, como propriedade comum, e também em oficinas comunais. No período dos primeiros cristãos, era impossível iniciar o trabalho comunal (com meios comunais de produção) porque, como nós já afirmamos., o trabalho baseava-se, não em homens livres, mas em escravos que viviam à margem da sociedade.
A Cristandade não tentou abolir a desigualdade entre o trabalho de diferentes homens nem entre a sua propriedade. Razão pela qual, o seu esforço para suprimir a distribuição desigual dos bens de consumo não vingou. As vozes dos Padres da igreja proclamando o Comunismo não encontraram eco. Além disso, estas vozes, em breve, tornaram-se cada vez menos freqüentes e, finalmente, caíram no silêncio completo. Os Padres da Igreja cessaram de pregar a comunidade e a distribuição dos bens, porque o crescimento da comunidade cristã produziu mudanças fundamentais dentro da própria Igreja.
III
No princípio, quando o número de cristão era pequeno, não existia clero no sentido próprio da palavra. Os fiéis, que formavam uma comunidade religiosa independente, uniam-se em comum, em cada cidade. Elegiam um membro responsável para dirigir o serviço de Deus e realizar as cerimônias religiosas. Todo cristão podia tornar-se bispo ou prelado estas funções eram coletivas, sujeitas a revogação, honorárias, e não comunicavam poder além do que a comunidade lhes conferia de livre vontade.À medida que o número de fiéis crescia e as comunidades se tornavam mais numerosas e mais ricas, a gerência dos negócios da comunidade e o desempenho das tarefas tornou-se uma ocupação que exigia muito tempo e uma aplicação total. Como os que exerciam este ofício não podiam executar as suas tarefas e simultaneamente os seus empregos privados, surgiu o costume de eleger entre os membros da comunidade um eclesiástico a quem eram exclusivamente confiadas estas funções. Portanto estes funcionários da comunidade tinham de ser pagos pela sua devoção exclusiva às funções dela. Assim se formou dentro da Igreja uma nova ordem de funcionários da Igreja, que se separou do corpo principal dos fiéis, o clero. Paralelamente à desigualdade entre ricos e pobres, aí apareceu uma outra desigualdade, entre o clero e o povo. Os eclesiásticos, no princípio eleitos entre iguais com vistas a exercerem uma função temporal, em breve se guindaram a uma espécie de casta que governava o povo.
Quanto mais as comunidades cristãs se tornavam numerosas nas cidades do grande Império Romano, tanto mais os cristãos, perseguidos pelo Governo, sentiam a necessidade de se unirem para ganhar força. As comunidades, espalhadas por todo o território do Império, organizaram-se portanto numa única Igreja. Esta unificação foi já uma unificação do clero e não do povo. Desde o séc. IV, os eclesiásticos das comunidades encontravam-se nos concílios. O primeiro concílio realizou-se me Nicéia, em 325. desta forma se formou o clero, numa ordem separada do povo. Os bispos das comunidades mais ricas e poderosas tomavam a presidência dos concílios. É por isso que o bispo de Roma em breve se colocou a si próprio à cabeça de toda a Cristandade e se tornou o Papa. Assim um abismo separava o clero, organizado em hierarquia, do povo.
Ao mesmo tempo, as relações econômicas entre o povo e o clero sofreram uma gande mudança. Antes da formação desta ordem, tudo que os membros ricos da Igreja ofereciam para propriedade comum pertencia aos pobres. Depois, uma grande parte dos fundos era gasta em pagar ao clero e em administrar a Igreja.
Quando, no séc. IV, o Cristianismo foi protegido pelo governo, e foi reconhecido em Roma como sendo a religião dominante, as perseguições dos cristãos terminaram e o culto deixou de ser exercido nas catacumbas ou em modestos compartimentos e passou para igrejas que começaram a ser construídas duma forma cada vez mais magnificente. Estas despesas reduziram assim os fundos destinados aos pobres. Já no século V, os rendimentos da Igreja eram divididos em quatro partes: a primeira para o bispo, a segunda para o clero menor, a terceira para manutenção da Igreja e era apenas a quarta parte que era distribuída para os necessitados. A população cristã pobre recebia portanto uma soma igual à que o Bispo recebia só para si próprio. Com o andar dos tempos foi-se perdendo o hábito de dar aos pobres a importância a eles destinada previamente. Sobretudo, quando o alto clero ganhou importância, os fiéis deixaram de ter o domínio sobre a propriedade da Igreja. Os bispos davam aos pobres a seu bel-prazer. O povo recebia esmolas do seu próprio clero. E não só. No princípio da cristandade, os fiéis faziam ofertas voluntárias para o tesouro comum. Logo que a religião cristã se tornou uma religião de Estado, o clero exigia que as ofertas fossem trazidas tanto pelos pobres como pelos ricos. Desde o século VI o clero impôs uma taxa especial, o dízimo (a décima parte das colheitas), que tinha de ser paga à Igreja. Esta taxa esmagava o povo como um pesado fardo; durante a Idade Média, tornou-se um verdadeiro flagelo para os camponeses oprimidos pela servidão. O dízimo era imposto sobre qualquer porção de terra, sobre qualquer propriedade. Mas foi sempre o servo quem pagou com seu trabalho. Assim os pobres não só perderam o apoio e ajuda da Igreja, mas viram os padres aliarem-se com os seus outros exploradores: príncipes, nobres, agiotas. Na Idade Média, enquanto a população trabalhadora se afundava em pobreza através da escravidão, a Igreja tornava-se cada vez mais rica. Além dos dízimos e de outras taxas, a Igreja beneficiava-se, neste período , de grandes doações, legados feitos por ricos libertinos de ambos os sexos que desejavam compensar, no último momento, a sua vida de pecado. Deram e voltaram a dar à Igreja dinheiro, casas, aldeias inteiras com os seus servos e algumas vezes rendas de terra ou direitos consuetudinários de trabalho.
Deste modo a Igreja adquiriu uma enorme riqueza. Ao mesmo tempo o clero deixou de o ser, para passar a ser o “administrador” da riqueza que a Igreja tinha recebido. Foi abertamente declarado, no século XII, ao formular-se uma lei que se diz vir da Sagrada Escritura, que a riqueza da Igreja pertence não aos fiéis, mas é propriedade individual do clero e do seu chefe, para o Papa, sobretudo. As posições eclesiásticas, portanto, ofereciam as melhores oportunidades para obter grandes rendimentos. Cada eclesiástico dispunha da propriedade da Igreja como se fosse sua e largamente a doava aos seus parentes, filhos e netos. Por este meio os bens da Igreja foram pilhados e desapareceram nas mãos dos familiares do clero. Por esta razão, os Papas declararam-se como proprietários soberanos das fortunas da Igreja e ordenaram o celibato do clero para o manterem intacto e impedir que seu patrimônio fosse disperso. O celibato foi decretado no século XIII, devido à posição do clero. Ainda para impedir a dispersão da riqueza da Igreja, em 1927 o papa Bonifácio VIII proibiu aos eclesiásticos de fazer oferta dos seus rendimentos aos leigos, sem permissão do Papa. Assim a Igreja acumulou enorme riqueza especialmente em terras lavradias e o clero de todos os países cristãos tornou-se o mais importante proprietário de terras. Possuía algumas vezes um terço ou mais do que um terço de todas as terras do país!
Os camponeses pagavam não só os impostos de trabalho mais o dízimo igualmente, e não só nas terras dos príncipes e dos nobres mas também em enormes áreas onde trabalhavam diretamente para bispos, párocos e conventos. Entre todos os poderosos senhores dos tempos feudais, a Igreja aparecia como maior de todos os exploradores. Na França, por exemplo, no fim do século XVIII, antes da Grande Revolução, o clero possuía a 5ª parte de todo o território do país com um rendimento anual de cerca de 100 milhões de francos. Os dízimos pagos pelos proprietários subiam a 23 milhões. Esta soma ia engordar 2.800 prelados e bispos, 5.600 superiores e priores, 60.000 párocos e curas e 24.000 monges e 36.000 freiras que enchiam os conventos. Este exército de padres estava livre de impostos e de obrigações de serviço militar. Nos tempos de calamidade – guerra, más colheitas, epidemias – a Igreja pagava ao tesouro de Estado uma taxa “voluntária” que nunca exercida 16 milhões de francos.
O clero, assim privilegiado, constituía, com a nobreza, uma classe dominante vivendo à custa de sangue e do suor dos servos. Os altos postos na Igreja e os que pagavam melhor eram distribuídos somente aos nobres e permaneciam nas mãos da nobreza. Conseqüentemente no período de escravidão, o clero foi aliado da nobreza dando-lhe apoio e ajuda para oprimir o povo a quem nada oferecia senão sermões, de acordo com os quais o povo devia permanecer humilde e resignar-se com a sua sorte. Quando o proletariado do campo e da cidade se levantava contra a opressão e escravatura, encontrava no clero um opositor feroz. É também verdade que mesmo dentro da Igreja havia duas cl;asses: o alto clero que absorvia toda a riqueza, e a grande massa dos curas rurais cujos modestos recursos não iam além de 500 a 2.000 francos anuais. Portanto esta classe revoltava-se contra o clero superior e, em 1789, durante a Grande Revolução, juntou-se ao povo para combater contra o poder da nobreza eclesiástica e laica. Assim foram as relações entre a Igreja e o povo modificadas com o andar dos tempos. A Cristandade começou como uma mensagem de consolação aos deserdados e pobres. Trazia uma doutrina que combatia a desigualdade social e o antagonismo entre ricos e pobres; ensinou a comunidade de riquezas. Em breve este templo de igualdade e fraternidade tornou-se uma nova fonte de antagonismos sociais. Tendo abandonado a luta contra a propriedade individual que tinha sido feita pelos primeiros apóstolos, o clero juntou ele próprio riquezas, aliou-se coma classe dominante que vivia a explorara o trabalho da classe trabalhadora. Nos tempos feudais a Igreja pertencia à nobreza, à classe dominante, e defendia ferozmente o poder desta contra a revolução. No fim do século XVIII e princípios do século XIX, o povo da Europa Central varreu a escravatura e os privilégios da nobreza. Nesta altura, a Igreja aliou-se outra vez às classes dominantes – à burguesia industrial e comercial. Hoje, a situação mudou e o clero já não possui grandes estados, mas possui capital que tenta tornar produtivo pela exploração do povo através do comércio e indústria, como fazem os capitalistas.
A Igreja Católica na Áustria possuía, de acordo com as suas próprias estatísticas, um capital de mais de 813 milhões de coroas (10), das quais 300 milhões eram em terras lavradias e em propriedades, 387 milhões em obrigações e além disso emprestou a juros total de 70 milhões aos donos de fábricas e aos homens de negócios. Eis como a Igreja, adaptando-se aos tempos modernos, se mudou para uma forma capitalista industrial e comercial a partir de um domínio feudal. Como outrora, ela continua a colaborar com a classe que se enriquece à custa do proletariado rural.
Esta mudança é ainda mais espantosa na organização dos conventos. Em certos países, tais como a Alemanha e a Rússia, os mosteiros foram suprimidos há muito tempo. Mas onde ainda existem, na França, Itália e Espanha, tudo evidencia o papel enorme desempenhado pela Igreja no regime capitalista.
Na Idade Média, os conventos eram o refúgio do povo. Era aí que procuravam refugiar-se para se livrar da severidade dos senhores e príncipes. Era aí que encontravam alimento e proteção em caso de pobreza extrema. Os conventos não recusavam pão e sustento aos esfomeados. Não esqueçamos, especialmente, que a Idade Média nada sabia de comércio como é normal nos nossos dias. Toda propriedade, todo o convento produzia em abundância para si próprio, graças ao trabalho dos servos e dos artífices. Muitas vezes as provisões em reserva não tinha saída. Quando produziam mais cereal, mais legumes, mais madeira do que era necessário para o consumo dos monges, o excedente não tinha valor. Não havia comprador para ele e nem todos os produtores se podiam preservar. Nestas condições, os conventos cuidavam gratuitamente dos seus pobres, em todo o caso oferecendo-lhe apenas uma pequena parte do que tinha sido extraído aos seus servos. (Este era o costume normal neste período e quase todas as propriedades pertencente à nobreza procediam do mesmo modo). De fato, os conventos beneficiavam consideravelmente desta benevolência; tendo fama de abrir as suas portas aos pobres, recebiam grandes dádivas e legados dos ricos e poderosos. Com o aparecimento do capitalismo e da produção para troca, todos os objetos adquiriram um preço e tornaram-se negociáveis. Nesta altura, os conventos, as casas dos senhores e dos eclesiásticos cessaram os seus benefícios. O povo não encontrou aí mais refúgio. Eis uma razão, entre outras, porque no princípio do capitalismo, no século XVIII, quando os trabalhadores não estavam ainda organizados para defender os seus interesses, apareceu uma pobreza não aterrorizadora que parecia que a humanidade tinha regressado aos dias da decadência do Império Romano. Mas enquanto a Igreja Católica, nos primeiros tempos, se esforçou por auxiliar o proletariado romano pregando o comunismo, a igualdade e a fraternidade, no período capitalista agiu de um modo completamente diferente. Procurou sobretudo beneficiar com a pobreza do povo: pôs a mão-de-obra barata a trabalhar. Os conventos tornaram-se literalmente infernos de exploração capitalista, tanto piores quanto tinham ao seu serviço mulheres e crianças. A causa judicial contra o convento Bom Pastora, em França, em 1903, foi um exemplo retumbante destes abusos. Rapariguinhas de 12, 10 e 9 anos eram compelidas a trabalhar em condições abomináveis, sem descanso, arruinando os olhos e a saúde e eram mal alimentadas e sujeitas à disciplina de prisão.
Nesta altura, os conventos estão quase abolidos na França e a Igreja perde a oportunidade de exploração capitalista direta. O dízimo, o açoite dos servos, tinha sido igualmente abolidos há muito tempo. Isto não impede o clero de extorquir dinheiro à classe trabalhadora por outros métodos, e especialmente através de missas, casamentos, funerais e batismos. E os governos que sustentam o clero obrigam o povo a pagar o seu tributo. Mais, em todos os países exceto nos USA e na Suíça, onde a religião é um assunto pessoal, a Igreja recebe do Estado enormes somas que obviamente provêm do duro trabalho do povo. Por exemplo. Na França os gastos com o clero sobem 40 milhões de francos por ano.
Para resumir, é o trabalho de milhões de explorados que assegura a existência da Igreja, do governo e da classe capitalista. As estatísticas relativas ao rendimento da Igreja na Áustria dão a ideia da considerável riqueza da Igreja, que foi outrora refúgio dos pobres. Há cinco anos (isto é, 19000) as suas receitas anuais ascendiam 35 milhões. Assim, no decurso de um só ano, “punha de lado” 25 milhões à custa do suor e sangue derramados pelos trabalhadores. Aqui estão alguns detalhes desse orçamento:
O Arcebispo de Viena, com rendimento anual de 300.000 coroas, e com despesas não superiores a metade dessa quantia, fazia 150.000 coroas de “economias” por ano; o capital fixo do Arcebispado era de cerca de 7 milhões de coroas. O Arcebispo de Praga goza de um rendimento superior a meio milhão e tem cerca de 300.000 de despesas; o seu capital atinge quase 11 milhões de coroas. O Arcebispado do Olomouce (Olmutz) tem mais meio milhão de rendimentos e cerca de 400.000 de despesa; a sua fortuna excede 14 milhões. O clero subordinado, que muitas vezes alega pobreza, não explora menos a população. Os rendimentos anuais dos párocos da Áustria atingem 35 milhões de coroas, as despesas apenas 21 milhões, com o que as “economias” dos párocos atingem anualmente 14 milhões. Finalmente, os conventos de há cinco anos possuíam, deduzidas todas as despesas, uma receita líquida de 5 milhões por ano. Estas riquezas cresciam todos os anos, enquanto a pobreza dos trabalhadores explorados pelo capitalismo e pelo estado crescia de ano para ano.
No nosso país, e em toda a parte, o estado de coisas, é exatamente como na Áustria.
IV
Depois de termos revistos resumidamente a história da Igreja não podemos surpreender-nos que o clero apóie o governo czarista e os capitalistas contra os trabalhadores revolucionários que lutam por um futuro melhor. Os trabalhadores com consciência de classe, organizados no Partido Social Democrata, lutam por dar realidade à ideia da igualdade social e da fraternidade entre homens, objetivo que fora anteriormente o da Igreja Cristã.
Não é possível empreender a igualdade quer numa sociedade baseada na escravatura quer numa sociedade baseada na servidão: torna-se possível entende-la no nosso tempo, isto é, no regime do capitalismo industrial. O que os apóstolos cristãos não puderam conseguir com os seus ardentes discursos contra o egoísmo dos ricos, os proletários modernos, trabalhadores conscientes da sua posição de classe, podem principiar a realizar no futuro próximo, pela conquista do poder político em todos os países, apoderando-se das fábricas, da terra e de todos os meios de produção dos capitalistas para os tornar propriedade comum dos trabalhadores. O comunismo que os sociais democratas têm em vista não consiste na distribuição entre pobres, ricos e preguiçosos da riqueza produzida por escravos e servos, mas no trabalho comum honesto e unido e no gozo honesto dos frutos comuns desse trabalho. O socialismo não consiste em dádivas generosas feitas pelos ricos aos pobres, mas na abolição total de toda a diferença entre ricos e pobres, obrigando todos igualmente a trabalhar de acordo com a sua capacidade para se suprimir a exploração do homem pelo homem.
Com o propósito de estabelecer a ordem socialista, os trabalhadores organizaram-se no Partido Social Democrata dos Trabalhadores que se propõe a este fim. Eis porque a Social Democracia e o movimento dos trabalhadores enfrentam o ódio feroz das classes proprietárias que vivem à custa dos trabalhadores.
As enormes riquezas acumuladas pela Igreja, sem qualquer esforço da sua parte, vêm da exploração e da pobreza do povo trabalhador. A riqueza dos arcebispos e bispos, dos conventos e paróquias, a riqueza dos donos das fábricas, e dos comerciantes e dos proprietários de terras, é comprada ao preço de esforços desumanos dos trabalhadores da cidade e do campo. Qual é a única origem das dádivas e dos legados que os ricos senhores fazem à Igreja? Obviamente que não é o trabalho das suas mãos e o suor dos seus rostos, mas a exploração dos trabalhadores que trabalham sem descanso para eles; servos ontem, assalariados hoje. Além disso, os subsídios que os governos hoje dão ao clero vêm do Tesouro Público, constituído na maior parte por impostos tirados às massas populares. o clero, não menos do que a classe capitalista, vive do povo, beneficia da degradação, da ignorância e da opressão das pessoas. O clero e os capitalistas parasitas odeiam a classe trabalhadora organizada, consciente dos seus direitos, que luta pela conquista das suas liberdades. Pois a abolição da desordem capitalista e o estabelecimento da igualdade entre os homens desferiram um golpe mortal, especialmente no clero que existe só graças à exploração e à pobreza. Mas sobretudo, o socialismo ajuda a assegurar à humanidade uma felicidade honesta e sólida cá em baixo, a dar ao povo a maior educação possível e o primeiro lugar na sociedade. É precisamente esta felicidade aqui na terra que os servidores da Igreja temem como uma praga.
Os capitalistas moldaram a golpes de martelo os corpos do povo, em cadeias de pobreza e escravatura. Paralelamente a isto, o clero, ajudando os capitalistas e servindo os seus próprios interesses, aprisiona o espírito do povo, mantém-o em ignorância crassa, pois compreende bem que essa educação poria fim ao seu poder. O clero, falsificando o primitivo ensinamento do Cristianismo que tinha por objetivo a felicidade terrena dos humildes, tenta hoje persuadir trabalhadores de que o sofrimento e a degradação que suportam não provêm duma estrutura social defeituosa, mas sim do céu, da vontade da “Providência”. Assim a Igreja mata nos trabalhadores a força, a esperança e o desejo dum futuro melhor, mata a fé em si próprios e o respeito por si mesmos. Os padres de hoje, com seus ensinamentos falsos e venenosos, mantêm continuamente a ignorância e a degradação do povo. Eis algumas provas irrefutáveis.
Nos países onde o clero católico goza de grande poder sobre a mentalidade do povo, na Espanha e na Itália por exemplo, as pessoas são mantidas em completa ignorância. A embriaguez e o crime florescem aí. Por exemplo, comparemos as duas províncias da Alemanha, Baviera e Saxônia. A Baviera é um estado agrícola onde a população vive predominantemente sob influência do clero católico. A Saxônia é um estado industrializado onde os sociais democratas exercem um grande papel na vida dos trabalhadores. Vencem as eleições parlamentares em quase todas as circunscrições, razão pela qual a burguesia mostra o seu ódio contra esta Província social democrata “vermelha”. E o que é que se vê? As estatísticas oficiais mostram que o número de crimes econômicos cometidos na ultra católica Baviera é relativamente muito mais elevado do que na “Vermelha Saxônia”. Vemos que em 1898, em cada 100.000 habitantes havia:
Encontramos uma situação completamente similar ao comparar o recorde de crimes em Possen dominada pelos padres como o de Berlim onde a influência da Social Democrata é maior. no curso do ano vemos 100.000 habitantes em Possen, 232 casos de ataques e ferimentos e em Berlim 172 apenas.
Na cidade papal, Roma, durante um único mês do ano de 1869 (o penúltimo ano do poder temporal dos papas), foram condenadas: 279 pessoas por assassínio, 728 por assaltos, 297 por roubo e 21 por fogo posto. Estes são os resultados do domínio clerical sobre o povo assoberbado pela pobreza.
Isto não quer dizer que o clero incite diretamente o povo ao crime. Bem ao contrário, nos seus sermões os padres condenam com freqüência o roubo, os assaltos e a embriagues mas os homens não roubam, não assaltam nem se embebedam porque gostem de o fazer ou de perseverar nesses hábitos. É a pobreza e a ignorância que são causas disso. Portanto aquele que mantém viva a ignorância e a pobreza do povo, aquele que mata sua energia e a sua vontade de sair desta situação, aquele que põe toda a espécie de obstáculos no caminho dos que tentam educar o proletariado, esse é responsável por estes crimes exatamente como se fosse um cúmplice.
A situação nas áreas mineiras da católica Bélgica era semelhante até há pouco tempo. Os sociais democratas foram lá. O seu apelo vigoroso aos infelizes e degradados trabalhadores ecoou através do país: “Trabalhador levanta-te a ti mesmo! Não roubes, não te embebedes, não baixes a cabeça em desespero! Lê, ensina-te a ti mesmo! Junta-te aos teus irmãos de classe na organização, luta contra os exploradores que te maltratam! Emergirás da pobreza, tornar-te-ás um homem!”
Assim, os Sociais Democratas elevam o povo e fortalecem os que perdem a esperança, reúne os fracos numa poderosa organização. Abrem os olhos dos ignorantes e mostram o caminho da igualdade, da liberdade, e do amor aos nossos vizinhos.
Por outro, os servos da Igreja trazem ao povo apenas palavras de humilhação e desencorajamento. E, se Cristo aparecesse hoje na terra, atacaria com certeza os padres, os bispos e arcebispos que defendem os ricos e vivem explorando os desafortunados, como outrora atacou os comerciantes que expulsou do templo para que a presença ignóbil deles não maculasse a Casa de Deus.
Eis porque rebentou uma luta desesperada entre o clero, suporte da opressão, e os sociais democratas anunciadores da libertação. Nesta luta não há comparação com a da noite escura e a do sol nascente? Porque os padres não são capazes de combater o socialismo com a inteligência e a verdade, têm de recorrer à violência e à maldade. As suas falas de Judas caluniam os que levantam a consciência de classe. Por meio de mentiras e calúnias tentam manchar todos os que oferecem as suas vidas pela causa dos trabalhadores. Estes servidores e adoradores do Bezerro de Ouro suportam a aplaudem os crimes do governo czarista e defendem o trono do último déspota que oprime o povo como o Nero.
Mas é em vão que os indignais, que desesperais que degenerais de servidores da Cristandade e vos tornais servidores de Nero. É em vão que ajudais os nossos assassinos, em vão protegeis os exploradores do proletariado sob o sinal da cruz. As vossas crueldades e calúnias nos tempos antigos não puderam impedir a vitória da idéia cristã, a idéia que sacrificaste ao Bezerro de Ouro; hoje os vossos esforços não levantarão nenhum obstáculo à vinda do Socialismo. Hoje sois vós, com as vossas mentiras e ensinamentos, que sois pagãos, e somos nós quem traz aos pobres, aos explorados, as novas da fraternidade e da igualdade. somos nós quem está a marchar para a conquista do mundo como fez aquele que outrora proclamou que é mais fácil a um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que a um rico entrar no reino do céu.
V
Algumas palavras finais
O clero tem ao seu dispor dois meios para combater a Social Democracia. Onde o movimento da classe trabalhadora começa a ser reconhecido, como é o caso do nosso país (Polônia), onde as classes dominantes ainda têm esperança de a esmagar, o clero combate os socialistas com sermões ameaçadores, caluniando-os e condenando a “cobiça” dos trabalhadores. Mas nos países onde as liberdades políticas estão estabelecidas e onde o partido dos trabalhadores é poderoso, como por exemplo na Alemanha, França e Holanda, aí o clero procura outros meios. Esconde o seu fim real e já não encara os trabalhadores como um inimigo declarado, mas como um falso amigo. Deste modo vereis os padres a organizar os trabalhadores e a fundar Federações Industriais Cristãs. Desta maneira tentam apanhar peixe na sua rede, atrair os trabalhadores a esta ratoeira de falsas federações onde ensinam a humildade, ao contrário das organizações da Social Democracia que têm em vista lutar e defender-se contra a opressão.
Quando o governo czarista finalmente cair sob os golpes do proletariado revolucionário na Polônia e da Rússia, e quando a liberdade política existir no nosso país então veremos o mesmo Arcebispo Popiel e os mesmos eclesiásticos que hoje trovejam contra os militantes, começarem repentinamente a organizar os trabalhadores em associações “Cristãs” e “Nacionais” para conduzi-los. Já estamos no princípio desta atividade subterrânea da “Democracia Nacional” que assegura a colaboração futura com os padres e hoje os ajuda a difamar os sociais democratas. Os trabalhadores devem, portanto, ser avisados do perigo para que não se deixe apanhar na vitória próxima da revolução, pelas palavras doces dos que hoje, do alto dos seus púlpitos, ousam defender o governo czarista, que mata os trabalhadores, e o aparelho repressivo do capital, que é a causa principal da pobreza do proletariado. Para os defender contra o antagonismo do clero no tempo presente, durante a revolução e contra a sua falsa amizade de amanhã, depois da revolução, é necessário aos trabalhadores organizarem-se no Partido Social Democrata.
E aqui está a resposta a todos os ataques do clero: A Social Democracia de modo algum combate os sentimentos religiosos. Ao contrário, procura completa liberdade de consciência para todo o indivíduo e a mais ampla tolerância possível para qualquer fé e qualquer opinião. Mas desde o momento que os padres usam púlpito como um meio de luta contra as classes trabalhadoras, os trabalhadores devem lutar contra os inimigos dos seus direitos e da sua libertação. Porque o que defende os exploradores e o que ajuda a prolongar este regime presente de miséria, esse é que é o inimigo mortal do proletariado, quer esteja de batina ou de uniforme de polícia.
Sociais democratas do início do século.
Cristãos ortodoxos que conheciam a supremacia do Papa.
S. Marcos, X, 25; S. Lucas, XVIII, 25; S. Mateus, XIX, 24.
Também conhecidos por “Roskilniki”, uma seita religiosa russa que tinha como contrário à verdadeira fé a revisão dos textos da Bíblia e a reforma litúrgica pelo Patriarca Nikon, em 1654.
“Proles é o termo latino que significa filhos. Os proletários, portanto, constituíam a classe de cidadãos que nada tinham a não ser os braços de seu corpo e os filhos dos seus ombros”. Communist Journarl, nº 1, Setembro de 1847 (Londres).
Ö proletariado romano viveu à custa da sociedade, enquanto que a sociade moderna vive à custa do proletariado”. Sismondi citado por Karl Marx in The Eighteemth Brumaire. Ver também: Engels, Principles of Communism (questão 2).
Mas ver Tertuliano (c. 160-230): “somos irmãos na nossa propriedade familiar com a qual a maior parte das vezes se dissolve a irmandade. Nós, portanto, que estamos unidos de alma e espírito, não temos dúvidas em ter bens em comum. Entre nós todas as coisas são distribuídas promiscuamente, exceto as esposas. Somente nisto nós dividimos a amizade, aí onde outros (pagãos gregos e romanos) somente a exercem”.
Abbé Bareille, Jean Chrysostome, Paris, 1869, vol. VII, pp. 599-603.
Certamente, contudo, os ministros locais, tal como aparecem nas epístolas de S. Paulo e nos Atos, parecem estar sob autoridade. No entanto eram eleitos, e muitas vezes provavelmente pela nomeação dos profetas locais; Apóstolos foram nomeados por Paulo e Barnabé. Perante a evidência de Atos 6 e das epístolas pastorais penso, com Harnock, que não podemos duvidar razoavelmente de que a nomeação era feita pela oração com imposição de mãos, e “sacramental”. E quando eram durante a vida de S. Paulo eram certamente controlados de cima”. Gore, Dr. Streeter and the Primitive Church, pp 12 e 13.
Link original: Revista Espaço Acadêmico - ano II - N. 17 - outubro de 2002 https://www.espacoacademico.com.br/017/17roslux.htm